Você já imaginou o que aconteceria se uma cidade resolvesse se mudar de lugar? Isso é o que está acontecendo com Kiruna, na Suécia.
Situada no ponto mais ao norte da Suécia, a 200 quilômetros do Círculo Polar Ártico, Kiruna é, em muitos aspectos, um lugar de extremos. O verão é caracterizado por cem dias de claridade total. O sol simplesmente não se põe. No inverno, o astro-rei passa tenebrosos 50 dias sem aparecer. É um período de escuridão total e temperaturas que rondam os 20º C negativos.
Kiruna é palco de raros acontecimentos naturais. É lá que ocorre um dos fenômenos mais impressionantes da terra: a incrível Aurora Boreal.
O fenômeno acontece quando partículas eletricamente carregadas de energia solar entram em contato com os gases presentes na atmosfera. O resultado desse encontro é um hipnotizante espetá- culo de luzes que dançam no céu, mudando de lugar e de cores.
Veja minhas dicas de como ver a Aurora Boreal na Suécia.
A convite do governo sueco, eu e outros dez correspondentes que vivem na Suécia visitamos Kiruna, uma cidade que passa por grandes transformações urbanas. Não bastasse o fato de existir civilização num lugar tão peculiar, a cidade está fazendo as “malas” literalmente.
O motivo? A presença de uma mina que vai forçar a cidade a se refazer num ponto não muito distante de onde está edificada. Desde o nascimento, Kiruna foi projetada para coexistir com uma mina rica em minério de ferro.
OO fundador do município foi o geógrafo sueco Hjalmar Lundborhm.À época diretor da Luossavaara-Kiirunavaara Aktiebolag LKAB, empresa estatal responsável pelas atividades de mineração na região, Hjalmar observou que era necessário um ambiente funcional para a distribuição do minério extraído.
Fazia-se necessária também a construção de uma zona urbana no local. Para o geógrafo, não bastava apenas construir uma ferrovia no meio do nada. O local tinha de ser atrativo para os trabalhadores envolvidos na atividade mineradora.
A LKAB é a maior mina subterrânea do mundo e está em plena expansão. Testes realizados pela Luossavaara-Kiirunavaara Aktiebolag LKAB apontam a existência de minério de ferro a até 1,8 mil metros de profundidade.
Quanto mais funda a perfuração, mais puro é o material extraído. Para entendermos a grandiosidade da LKAB, seguimos para uma visita à mina. Adentrei a montanha Kirunavaara sem a mínima noção do que poderia encontrar ali.
Com poucos minutos e uma curta caminhada, minha noção de profundidade simplesmente foi para o espaço, dada a escuridão e a umidade daqueles grandes túneis que comunicam entre si formando um verdadeiro labirinto de rochas.
Há uma série de cuidados a serem tomados dentro de uma mina. Fiquei com um frio na barriga quando um dos seguranças incumbidos de nos conduzir mina adentro nos alertou sobre os requisitos de segurança.
Caminhamos mais um pouco e finalmente chegamos ao local de nosso tour, o Centro de Visitas da LKAB, localizado a 540 metros abaixo da superfície da terra. O espaço é um notável complexo com instalações modernas. Lá, até o wifi funciona numa velocidade razoável.
Atualmente destinada ao turismo, essa repartição é composta por um auditório, um museu, imensos túneis que guardam máquinas e outros objetos de exposição. Claro que não poderia faltar uma cafeteria! Afinal, na S écia, a pausa para o fika, a hora de apreciar um café acompanhado de um bulle (pão doce sueco), é algo sagrado, seja no alto de uma montanha, seja em um grande buraco na terra.
Mas por que Kiruna vai se mudar de lugar?
Mesmo com a riqueza mineral que contribui de maneira direta para a economia local, a presença da mina ameaça Kiruna.
“Precisamos deslocar a cidade porque a LKAB está em expansão. Todos os dias é retirada uma grande quantidade de minério e, quando esse material é extraído, a deformação das áreas próximas à mina é inevitável. Dessa forma, temos que mover a cidade antes que ela seja destruída”, explica a guia responsável pelo nosso tour.
Desde 2012, autoridades locais, cidadãos e diretores da LKAB dialogam para colocarem em prática o ousado plano de transferir a cidade para uma área a três quilômetros de onde ela está. A medida vai evitar que Kiruna seja ‘engolida’ pela mina.
Arquitetos, representantes da empresa e antropólogos integram a comissão “Kiruna 4 Ever” (Kiruna para Sempre), cuja missão é reconstruir a cidade.
A primeira fase desse plano tem conclusão prevista para 2018, ano em que serão entregues a nova praça central e a nova prefeitura. “Queremos reinventar Kiruna da forma mais moderna, mas, ainda assim, manter a essência e a identidade que foi construída aqui ao longo de um século.
Se alcançarmos esse equilíbrio, nosso plano terá sido bem sucedido”, comenta Eva Ekelund, gerente de desenvolvimento de Kiruna. Para manter a identidade local, 21 monumentos históricos da cidade serão transferidos. Eles serão desmontados e recolocados no novo centro.
“Esses edifícios vão ser retirados do lugar e remontados, peça a peça,como num quebra-cabeças”, explica Mikael Stenqvist, arquiteto que lidera a reconstrução de Kiruna. Um dos edifícios que serão transferidos é a Kirunas Kyrka (Igreja de Kiruna).
Idealizada pelo arquiteto Gustav Wickman, a construção de 1912 é inspirada no formato das tendas Sami, povos indígenas que habitam a região: uma charmosa construção vermelha, curiosamente utilizada tanto para eventos católicos quanto em celebrações de outras religiões. Tendo sido planejada para ser um local de todos, na igreja praticamente inexistem símbolos religiosos.
Entre uma conversa e outra com alguns moradores, tenho a impressão de que, para eles, a mudança é positiva. “Temos a oportunidade única de transformar a cidade em algo melhor”, comenta Dan Ludndström. Muito simpático, Dan faz questão de apresentar a casa onde reside, localizada em uma das áreas que serão demolidas na já iniciada primeira fase do projeto.
Dan e a esposa já procuram uma nova residência. “Já visitamos dois apartamentos, mas ainda não gostamos do que vimos. Na nova casa, queremos ter mais espaço para receber nossos filhos e netos. Não abro mão de uma varanda”, comenta.
Da atual residência, Dan tem uma visão privilegiada da montanha Kirunavaara e do empreendimento responsável pela futura demolição do imóvel. A LKAB oferece o valor de mercado dos imóveis, com um acréscimo de 25%, aos proprietários de apartamentos ou casas que optarem pelo ressarcimento financeiro.
A empresa também é responsável pela constru-ção de edifícios residenciais para os moradores que vivem de aluguel. Os novos apartamentos podem ser alugados a um preço reduzido nos primeiros cinco anos. Seguimos para uma reunião com Lars Bäckström, secretário de desenvolvimento de Kiruna.
No bate-papo com os jornalistas, ele explica que o município é responsável pela estruturação e execução do projeto de realocação, enquanto a LKAB faz as negociações com os moradores das áreas afetadas. “Em números, essa transformação vai afetar diretamente cerca de 6 mil pessoas. Antes de sair demolindo tudo, é necessário um plano viável de desenvolvimento”, comenta.
Outras cidades do mundo já tiveram de se mudar devido a grandes obras ou por questões ambientais. Mas o desafio de Kiruna é único dada a escala dessa mudança. “Temos de construir um centro da cidade e áreas residenciais. Tudo isso exige a construção de uma infraestrutura, como sistemas de água e esgoto e de abastecimento de energia elétrica”, explica Bäckström. O encontro com o secretário de desenvolvimento de Kiruna foi finalizado com um jantar no qual foi servido um prato típico da região: bife de rena com geleia de lingonberry, uma combinação agridoce muito apreciada na Escandinávia.
Durante o jantar deixamos de lado deixam as questões relativas à mudança de endereço de Kiruna e a pauta passou a ser a belíssima Aurora Boreal. Presentes em um dos poucos locais do mundo onde o fenômeno acontece, tínhamos a esperança de assistir àquele espetáculo natural.
A previsão de visibilidade da Aurora Boreal atingia quase a escala máxima, algo muito raro de acontecer. Pouco antes das 23h, fomos presenteados com um belíssimo show de luzes no céu. Em êxtase, entendi a razão de os moradores de Kiruna viverem tão orgulhosos do município, como divulga o site de turismo da cidade.
Para todos nós, o inverno rigoroso, com temperaturas abaixo de 0ºC, foi completamente esquecido por mais de duas horas. O que era o frio? Não sei dizer. Só tinha olhos para o céu de Kiruna que dançava lindamente sobre as nossas cabeças.