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Por quem os sinos dobram – Uma viagem a São João Del Rei

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Por quem os sinos dobram – Uma viagem a São João Del Rei

História, religiosidade e metais: o misto que dá a liga perfeita aos sinos são-joanenses

O mar. Poucas coisas além do mar exercem maior fascínio e curiosidade em quem mora em terras para além das regiões costeiras. Durante muito tempo em minha vida acreditei no que repetidas vezes me disseram. E que maldade me fizeram ao dizer que Minas não tem mar! “Mas que diabo de mar Minas poderia ter?”, você provavelmente deve estar se perguntando. Pois tem! Está na literatura geográfica do francês Pierre Deffontaines. Minas tem mares, muitos mares de morros. E se você nunca navegou por eles, te digo que já passou da hora!

MontanhasFoto: Marcos Vinícius Pereira

Escondidas entre mares de morros de Minas há simpáticas e acolhedoras cidades. Muitas destas, especialmente as localizadas no Campo das Vertentes, têm um peso histórico inimaginável. Há pouco tempo, passei por aquela região – na icônica Estrada Real – com destino a São João Del-Rei para tentar desvendar como os tradicionais sinos da cidade ainda comunicam um sem fim de acontecimentos à população.

É na porção histórica da cidade onde se encontram as cinco principais paróquias e igrejas são-joanenses, todas elas de arquitetura barroca. Aquele foi o ponto de partida para a minha saga investigativa. Será que em uma cidade onde predominam estudantes e mochileiros há quem dê ouvidos aos sinos, esses diferentes e antigos objetos que no passado eram muitos usados como meios de comunicação?

“Sabe quem vai poder te ajudar?”

É cedo. O relógio marca 14h13. Os três portões principais da Catedral do Pilar permanecem trancafiados com grossas correntes. Ao lado da imponente construção de 1721, um senhor assentado ao fundo de uma simples alfaiataria saboreia lentamente o almoço. Ele percebe minha presença, mas não interrompe a refeição. Com um aceno de cabeça reconheço o momento e aguardo em silêncio.

Tecidos de cores sóbrias colorem o balcão antigo de madeira. Uma pequena lâmpada alumia o caminho têxtil que a agulha da máquina de costura logo penetrará de forma milimétrica. Modelos de ternos e camisas de cortes modernos estampam as paredes de incomum tonalidade azul. No umbral de uma das portas, um tecido vermelho e aveludado.

O meu olhar atento a tudo é interrompido por um homem que adentra o estabelecimento e me oferece ajuda. Eu me explico. “Linguagem dos sinos?”, ele pensa em voz alta. Depois de uma breve pausa e um longo suspiro, responde: “Sabe quem vai poder te ajudar? O senhor Geraldo. Ele já é mais idoso e sempre esteve por dentro disso”, revela o homem.

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Desço um beco de pedra e vinte passos me bastam para chegar à loja de artigos e presentes onde fui orientado a procurar pelo meu primeiro ‘informante’. Mas não foi propriamente ali que encontrei quem pudesse falar algo a respeito do que queria saber. “O senhor Geraldo não está. Ele conhece um pouco sobre o significado dos sinos das igrejas, mas sabe quem vai poder te ajudar? O senhor Aluízio. Ele é maestro da Orquestra Sinfônica e tem uma pesquisa a respeito disso”, contou-me o balconista.

Um “tiquim” de história

Grande parte da irmandade da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar reside em casas a um curto raio de distância do templo. Aluízio, cuja família sempre esteve envolvida com o sacerdócio, vive com a esposa em uma modesta acomodação ao lado da igreja. Há alguns anos aposentado, hoje ele se devota inteiramente a Deus.

Na casa paroquial, encontro-o receptivo e com um largo sorriso no rosto. Poucos são os objetos e cômodas que compõem o hall de entrada: um banco de madeira rústico bem trabalhado no qual nos acomodamos, um quadro, uma cômoda de mogno com pequeno vaso de flor na superfície e, no cantinho, um relógio – réplica de uma inconfundível torre de igreja colonial com um pequeno sino. O ambiente é escuro. Fechada a porta, a iluminação se resume aos raios de sol rebatidos na igreja e que transpõem a janela ou encontram caminho nas frestinhas da porta.

Aluízio tem 75 anos. Filho de São João Del-Rei, de lá ele nunca saiu e nem pretende. Sr. Aluízio é uma figura simples e, assim como praticamente todos os moradores locais mais idosos e naturais do município, tem um impressionante domínio da história da cidade, que inevitavelmente se confunde com a própria. Ele fala de famílias tradicionais, clérigos, fundidores e dos ancestrais como se a eles um dia tivesse sido apresentado.

Quando questionado a respeito dos sinos da cidade, Aluízio sorri e conta causos. Sinos sempre o fascinaram. A ‘linguagem’ e a importância desses gigantescos e pesados objetos ele conhece desde bem pequeno. “Uma igreja pode até prescindir de um instrumento musical, mas não pode prescindir do sino, pois ele é o elo de comunicação mais rápido e abrangente, pela sua sonoridade, entre a igreja e os fiéis”, revela.

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Quem conhece os sinais, ele garante, pode abrir mão da parafernália moderna –  televisão, rádio e até telefone – para saber de ritos litúrgicos, datas comemorativas, mortes e até de uma senhora em dificuldades no parto.

Grande parte dos sinos são-joanenses foi fabricada no século XIX, na própria cidade, ao contrário dos sinos da corte, a maioria importada de Portugal. Naquela época, a proibição lusitana em relação à instalação de fundições na colônia (uma medida para conter o contrabando de ouro) começava a se tornar mais branda em São João Del-Rei.

No Império, o ‘cardápio’ de comunicação era amplo. Numa época em que as esferas religiosa e política se entrecruzavam, nascimentos de crianças de sangue nobre, coroações, aclamações de reis, visita de autoridades e outros acontecimentos eram anunciados pelos sinos. Com a laicização do Estado, os sinos se voltam unicamente para Deus. Temporariamente, é verdade. No século XX, aconteceu um processo de ‘secularização’ do dobrar dos sinos. Tocava-se por qualquer coisinha. Era como se o sagrado se tornasse vão. Ninguém mais tinha sossego. De manhã, tarde e noite lá estavam os sineiros nas torres a badalar. O som constante tirava o sono dos irmãos e dos párocos, que nunca ouviram tanta reclamação ao telefone.

Com o tombamento da cidade pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Minas Gerais (Iphan-MG), o retinir dos sinos foi limitado. Ainda assim os sinos continuam a transmitir mensagens. Sinos grandes e pequenos, cada qual com suas peculiaridades de formas e pesos, cumprem uma função específica e dão origem a sons e significados distintos.

Conversa com sineiros

O momento relembra a Paixão e morte de Cristo. Uma pancada e quatro dobres espaçados e tristes se fazem ouvir em São João Del-Rei todas as sextas-feiras às 15h. Antes de mover com dificuldade o sino de sabe-se lá quantas toneladas, Valmir faz o sinal da cruz e eleva o olhar e a mão direita aos céus enquanto a esquerda segura o badalo.

Ele é sineiro desde os dezesseis anos. E ao longo de todo esse tempo, errou apenas uma vez. A precisão é algo bastante exigido por parte dos padres. “Eles ficam atentos”, resume. Um dobre a mais ou o descompasso com o relógio de pulso do sacerdote pode significar uns bons puxões de orelha.

Há nove anos, Vinícius também toca os sinos da Basílica do Pilar. Nunca errou. Por enquanto. Ele tem certeza de que não está imune aos equívocos. “Não tem jeito. O sineiro que diz nunca ter errado provavelmente está mentindo”, acredita.

Para dar conta do ritmo intenso, todos obedecem uma escala. Os sineiros se revezam em duplas. Fazer objetos de tão grande magnitude girarem em torno do próprio eixo é trabalho para, pelo menos, dois. Cada um deles dedica três dos sete dias da semana ao ofício.

Diante dos sinos, todo cuidado é pouco. Valmir guarda as marcas de um vago momento de distração. A cabeça dele já foi atingida por uma pancada. Na ocasião, ele quase foi lançado da torre. Foram diversos pontos internos e externos. O sineiro escapou com vida, ao contrário de um saudoso amigo.

A educação e simplicidade dos sineiros impressionam. A rigorosidade com o horário segue a regra. Às 14h50, dez minutos antes do compromisso, os dois já estavam na porta da basílica munidos de uma chave de quase quinze centímetros que abriria o caminho. O convite me é feito para subir, e eu, é claro, não faço cerimônias.

A escada, em formato espiral, é muito estreita. Os degraus são pequeninos e muitos. As passagens apertadas e os trechos verticais são obstáculos visivelmente fáceis para meus guias. Para mim, nem tanto. Coisa de explorador de primeira viagem. Como não poderia deixar de ser, cheguei esbaforido. Mas como valeu à pena,.. Lá do alto tenho uma vista panorâmica de toda a cidade e da imensidão de morros que a cerca.

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Às 15h, o maior sino da basílica ganha movimento e me faz tremer por dentro. O som ensurdecedor aos ouvidos destreinados nem incomoda aos sineiros. O meu coração bate forte, não sei se pela proximidade do sino ou pela simbologia do momento que há pouco havia descoberto. É uma experiência simples, mas única e inesquecível.

E você, já reparou nos sinos de São João Del Rei?

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